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É estranho. Você sai de casa depois do almoço, vai a um shopping center e entra sozinho numa sala escura de cinema a 10 minutos do início da única sessão. Antes que comece a exibição, chegam mais seis pessoas. Uma sai no meio do filme.
O filme exibido é um documentário chamado O Roteiro da Minha Vida: François Truffaut, dirigido por David Teboul e Serge Toubiana. Seis meses antes, em maio, foi visto pela plateia do Festival de Cannes e agora chega ao Brasil através do Festival Varilux, que, anualmente, nos atualiza com a produção do cinema francês.
É tão estranho quanto improvável. Em 2024, uma sessão de cinema quase sem público na qual sete pessoas pagaram para ver um filme sobre François Truffaut. A quem Truffaut ainda pode interessar nesses tempos em que os espectadores se enchem de pipoca nas salas de shopping e os YouTubers se comportam como se fossem críticos de cinema?
François Truffaut tinha algo de John Lennon, John Lennon tinha algo de François Truffaut – me permitam a maluquice da comparação. Sem pai nem mãe, John Lennon foi salvo da delinquência pela música. Sem pai nem mãe, François Truffaut foi salvo da delinquência pelo cinema. Seu guia foi o grande crítico André Bazin.
François Truffaut passou pelo reformatório antes de fazer crítica de cinema nos Cahiers du Cinéma. Jean-Luc Godard era seu colega nos Cahiers. Na virada da década de 1950 para a de 1960, os dois fundaram uma onda que ficou conhecida como Nouvelle Vague.
François Truffaut inaugurou a Nouvelle Vague com Os Incompreendidos. Jean-Luc Godard com Acossado. Um filme é o oposto do outro. Truffaut é o oposto de Godard. Truffaut é clássico. Godard é revolucionário, fez o cinema da invenção e da ruptura.
O Roteiro da Minha Vida oferece um retrato de François Truffaut dizendo ao espectador que seus filmes contam a história da sua vida. A começar por Os Incompreendidos, onde um menino praticamente sem pai nem mãe vai parar num reformatório.
No cinema de François Truffaut, tem a infância perdida em Os Incompreendidos, O Garoto Selvagem e Na Idade da Inocência. Tem o amor e a amizade em Jules e Jim, o amor e a morte em O Quarto Verde, o amor e a infidelidade em Um Só Pecado.
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O cinema de François Truffaut tem os livros em Fahrenheit 451, o teatro em O Último Metrô e o próprio cinema em A Noite Americana. E tem o admirável ciclo Antoine Doinel. De 1959 a 1979, em cinco filmes, Doinel e Truffaut são uma só pessoa.
O cinema de François Truffaut tem muito de Alfred Hitchcock em A Noiva Estava de Preto e mais ainda em De Repente, Num Domingo, o último filme que realizou. Truffaut tinha profunda admiração por Hitchcock, e a longa entrevista que fez com o cineasta britânico se transformou num livro que todos os cinéfilos deviam ler.
François Truffaut também era ator. Foi o protagonista do mórbido O Quarto Verde e o diretor de cinema Ferrand em A Noite Americana. E está no elenco de Contatos Imediatos do Terceiro Grau, de Steven Spielberg.
O Roteiro da Minha Vida dá conta de tudo isso. Retrato sensível de Truffaut, é um filme para quem gosta mais de cinema do que de filmes. Um tumor no cérebro matou François Truffaut aos 52 anos em 21 de outubro de 1984. Faz 40 anos.