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Ouvi de um amigo que Chico Buarque é um artista muito mimado. Como crítica, ele se referia menos ao compositor de música popular do que ao escritor de livros de ficção.
Ouvi de uma fã incondicional de Chico Buarque que é necessário separar o compositor do escritor. Ou não buscar o homem que faz canções no homem que escreve livros.
Penso que não é difícil separar um do outro. Mas não é fácil, a partir da dimensão do primeiro, não procurá-lo igualmente gigante no segundo.
Chico Buarque é um dos grandes compositores populares do Brasil em todos os tempos. O mundo pode não reconhecer, porque não o conhece tão bem, mas Chico Buarque é um compositor de música popular no nível dos melhores em escala planetária.
Admitamos, no entanto, que o mesmo não se pode dizer do Chico Buarque escritor. Seus livros de ficção – oito a partir de Estorvo, que é de 1991 – não o colocam, sequer, ao lado dos grandes escritores brasileiros.
É óbvio que Chico Buarque sabe escrever livros de ficção. Domina a linguagem e a narrativa das histórias que conta. Mas não há neles o brilho, muito menos a genialidade das letras que escreve para as melodias que compõe.
Li Estorvo tão sem entusiasmo que cheguei a agendar um capítulo por dia. Cumpri a agenda só para não deixar de conhecer o livro, jamais pelo prazer que proporcionaria.
De Estorvo a Bambino a Roma, lá se vão 33 anos. Entre eles há Benjamin (1995), Budapeste (2003), Leite Derramado (2009), O Irmão Alemão (2014), Essa Gente (2019) e os contos de Anos de Chumbo (2021), todos pela Companhia Das Letras.
Em 1974, pela Civilização Brasileira, Chico Buarque publicou Fazenda Modelo. É uma novela que tem algo de A Revolução dos Bichos, de George Orwell.
Bambino a Roma, o livro mais recente de Chico Buarque, foi lançado há pouco mais de dois meses. No dia 19 de junho, o artista completou 80 anos.
A capa traz uma foto de Chico Buarque sentado em sua bicicleta. É uma fotografia da infância, do tempo em que ele morou na Itália. Mas a mesma capa avisa: ficção.
Em O Homem que Matou o Facínora, western clássico de John Ford, descobre-se que a ficção suplantou a realidade. Quando é assim, publica-se a lenda. É a lição do filme.
A gente lê Bambino a Roma como se fosse ficção, porque assim o livro é vendido, mas procurando a realidade da época em que Chico Buarque de fato viveu em Roma, no início da década de 1950, enquanto seu pai, Sérgio Buarque de Holanda, ali dava aulas.
O texto apresentado como de ficção é cheio de pistas que remetem à história de Chico Buarque e da sua família. Até o livro que ele encontra (e compra) casualmente em Roma se chama Raízes do Brasil – a obra seminal que o pai lançou em 1936.
Se quiser, o leitor pode ver Chico por toda a narrativa porque a escrita lembra muito a fala do autor, o jeito da conversa dele, o estilo do seu humor. Dizendo verdades ou mentiras, é o menino Chico que está ali, revirando o baú da sua infância em Roma.
Bambino a Roma foi me conquistando aos poucos. E nunca integralmente. O livro, com momentos deliciosos, cresce no final, nos seus derradeiros capítulos. O desfecho – e não vou cometer spoiler – é surpreendente.
Sobre a delimitação do que é ficção e do que não é, destaco algo que está no início do capítulo 15 de Bambino a Roma: “Meu sonhado livro de memórias poderia ser bem isso, um papel de parede reproduzindo o que ele ao mesmo tempo esconde”.
Ainda no capítulo 15 do livro: “No futuro a imaginação cobriria as lacunas da memória e os acontecimentos reais se revezariam com o que poderia ter acontecido”.
A adesão de Chico Buarque à literatura de ficção é legítima e merece respeito. Não nos priva, contudo, do desejo de que ele escreva um volume de memórias, como Caetano Veloso fez brilhantemente em Verdade Tropical. E de que seja tudo verdade.